sábado, 24 de dezembro de 2016

Blaster Knuckle merecia mais (Ou: Como desenhar pessoas negras sem ser um babaca.)


Então. Graças a um tweet (Pra vocês verem como o Twitter pode ser relevante, às vezes...), pude tomar conhecimento de BLASTER KNUCKLE, mangá realizado por Wazarai Shizuya em 1992 (acho eu) - também criador do bem recente Kento Ankokuden Cestvs


Resumindo, Blaster Knuckle é sobre Victor "Bloody Rain" Freeman, um ex-boxeador negro vivendo nos Estados Unidos do anos 1800... E, considerando o contexto e o lugar, Freeman lida com resquícios do escravismo, racismo e, claro, a maldita Klan. E, nisso, entra a coisa "mais mangá" e fantástica da história: como o tweet acima já esclarecia, nesta "História Alternativa", a KKK é composta por monstros de verdade.

Tipo, não que não sejam monstruosos no mundo real, mas, aqui, a pegada é mais para monstros de mais de três metros de altura, 400kg de músculo, presas, garras e devoradores de carne humana. Nesse sentido, inclusive, já mando um pequeno spoiler (e crítica social): os monstros criaram a Klan e matam/devoram pessoas negras porque, segundo um deles, ninguém se importará se um ou cem negros desaparecerem; eles não "criaram" o racismo, mas se aproveitaram muito dele para "viverem bem".

O doido é que isso tudo faz muito sentido para um "predador sobrenatural", mas pra vocês verem como racismo estrutural e privilégio branco funcionam bem na ficção e no mundo real...




Enfim. Depois dessa revelação, são apenas uns 20 capítulos de Victor usando suas técnicas supremas de boxeador - apesar de ser um mangá seinen, esse aspecto tem um clima bem shonen, ó... - para destruir vários monstros e, às vezes, esculachar alguns brancos racistas - os monstros têm uma coisa meio "aristocracia vampírica" e, claro, usam humanos como minions, mas todos já eram pessoas merdas antes da influência do monstro... Infelizmente, a série foi descontinuada e me pergunto se foi por não ser, simplesmente, muito chamativa ou se deriva da bem perceptível "anti-blackness" que há, em geral, em países asiáticos... 

É por isso que o trabalho de Wazarai me chamou tanta atenção. Considerando isso e a maioria dos estereótipos que o resto do mundo recebe de produções norte-americanas e afins, a abordagem deste mangá é muito agradável. Apesar de ser um total "scary black man" (Mas quem não ficaria com raiva nessas condições?) e não ter muita personalidade, Victor é, praticamente, o Kenshin Himura (Samurai X) de seu mundo. Pessoalmente, isso já conta muitos pontos positivos... 



Além disso, tem a questão da arte. Muitos apontaram que lembra muito o trabalho de Kentaro Miura em BERSERK, mas eis que, segundo o TV Tropes, Wazarai e Miura são brothers e estudaram juntos! Ou seja, devem ter aprendido a desenhar "juntos". Contudo, diferente de Berserk, que o único personagem obviamente negro é, além de fisicamente horrível, um estuprador (Parabéns, Miura...), a arte de Blaster Knuckle mostra muitas e variadas pessoas negras, e nenhuma delas é bestializada visualmente, como é comum em muitos mangás e quadrinhos americanos - desenhados por brancos, em geral. Por exemplo, comparem isto... 


Com isto (Moonshine, com arte de Eduardo Risso) - principalmente, nos dois meninos maiores:


Sobre como pessoas negras são representadas em HQs e outros, existem artigos como o do Marcolino Gomes, mostrando o quanto isso é sintomático em produções no mundo todo. Incrivelmente, um mangá dos anos 1990 consegue ser menos aviltante que um comics de novembro de 2016, e isso diz muito sobre autores e desenhistas... 

Aliás, como disse, apesar de Blaster Knuckle ter seus vinte e poucos anos, só ouvi falar disso há poucos dias, e muitas outras pessoas também... Logo, já encontrei pessoas comentando sobre o mangá de um "negão aí" e, na comparação com Berserk, alguém perguntando se "a Dragonslayer (espada gigantesca do protagonista) fica dentro das calças, kkkk" de Victor Freeman. Na real, foi isso que me motivou a escrever; a constante desumanização de personagens (e pessoas reais, afinal) negras

Sou preto minha vida toda (duh) e esse tipo de comentário não me surpreende em nada considerando de onde vieram, mas é notável como, considerando cultura pop, principalmente, uma personagem negra é mais interessante como uma "coisa", um "produto" do que aquilo que realmente representa. Quando te chamam de "negão" - e sou chamado disso a vida toda, também - é só mais um jeito de coisificar você (ou a personagem) como mais um desses aí. Tanto que as mesmas pessoas devem chamar qualquer um não-negro de "ô, amigo", "ei, cara" e tal... E se preocuparem com tamanho da genitália antes de qualquer outra coisa nem precisa de muito comentário. Citando (em tradução livre) The Blacker the Berry, do grande Kendrick Lamar

Sou preto como a lua, herança de uma pequena vila. Perdão, minha origem veio do fundão da humanidade. Meu cabelo é ruim, meu pau é grande, meu nariz é redondo e largo. 

Da mesma forma, no mangá, Freeman, um homem adulto, é chamado constantemente de "boy" - além de "n*gg*r", claro. Mudam os estilos e os termos, mas o pensamento não é muito diferente dos caras de capuz branco (vide Dylann Roof, afinal)... Não é novidade alguma. E quase inevitável; quando a personagem não é criada para ser desqualificada, coisificada ou demonizada (já chego nesse), o público faz e, na maioria dos casos, tanto o criador quanto o público não são negros. Outro exemplo recente disso foi com STRANGE FRUIT, de Mark Waid e J. G. Jones

Ao ler a história, que também trata de escravismo, racismo e da existência da KKK, entre outras coisas, e este excelente texto de J. A. Micheline, fica claro que, além de introduzir personagens brancas como bondosos salvadores enquanto as personagens negras iniciais são mostradas cometendo crimes ou farreando, coisifica XTREME o que seria o "Supeman negro" da trama - logo que aparece, o primeiro comentário é sobre o tamanho do pênis do mesmo; é, pois é, e em um gibi de 2015... 

E o pior disso: só estou falando de bestialização e hipersexualização de homens negros. Se formos entrar em como representam mulheres negras... Para voltar a um exemplo já aqui presente, a única personagem negra que não tem um visual aviltante na supracitada Moonshine é uma jovem negra que o protagonista (branco) olha com interesse sexual na primeira edição - a mesma mulher dos dois painéis mais acima. Brian Azzarello e Risso já faziam muito disso em 100 Balas, na verdade, mas tinham a "desculpa" de fazer o mesmo com, com poucas exceções, todas as personagens femininas... 

Pessoalmente, já percebo esse tipo de representação artística ou narrativa há algum tempo - e olha que sou meio tonto. Poderia citar mais exemplos - a maioria, inclusive, parei de consumir porque não ia financiar uma merda dessas -, mas uma das percepções mais antigas veio ao ler a Espada Selvagem de Conan. Embora eu gostasse muito desde meus doze ou treze anos de idade, notei que a maioria das personagens negras - daquele pseudo-continente africano criado pelo Robert E. Howard - que as histórias apresentavam eram associadas a algum demônio, inclusive fisicamente. Falei disso e mais um pouquinho no meu trabalho de conclusão de curso... 

Em ESC, pelo menos, quase qualquer tipo de personagem, de qualquer background, acabava sendo envolvida ou remetia a algo demoníaco, sinistro, mas mostrar pessoas negras ou conceitos relacionados ao continente africano como "exóticos" e demonizá-los não se limita a esse título ou mera ficção - só ver como falam de umbanda, candomblé e outros, afinal. Porém, poderia gastar algumas linhas falando de alguns quadrinhos europeus ou do Lovecraft... 

Para mim, fica cada vez mais claro que, na grande maioria das vezes, que criam, consomem ou dizem gostar de materiais com temáticas, personagens e experiências negras não convivem e, muito provavelmente, não gostam de pessoas negras reais. Obviamente, elas também não são negras, na maioria das vezes.

Isso fica bem óbvio em outro exemplo: a Marvel Comics publicando um gibi "blaxploitation" do Luke Cage escrito e desenhado por um cara branco - Genndy Tartakovsky - e que pode ser facilmente comparado com as piores ilustrações de pessoas negras já feitas (e eram de uma época que enforcamento de negros era um "programa familiar"). Blaxploitation para um branco curtir, só se for...


Como sempre digo, são as mesmas pessoas ouvindo Racionais e conferindo a carteira, bolsa ou alarme do carro quando passamos pela rua...E é por isso que tu acha legal o gibizinho ou mangá, mas ainda faz ou encontra algo "risível". 

Infelizmente, como já dito, Blaster Knuckle não foi muito longe e, ainda pior, demorou demais pra ser "descoberto". Certamente, teria um impacto muito maior no moleque Emanuel de entre a década de 1990 e início dos 2000... Em mim e em muitos outros. Claro, ao ir "concluindo" a leitura do mangá, fica claro que a coisa era mais para mostrar um sujeito matando monstro literalmente no soco, mas o autor não esquece que Victor Freeman é negro, que sofreu e sofre por isso e que sua luta é, parafraseando Muhammad Ali, para "poder ser negro em paz" - além de vingança, certamente. Apesar de todo o massavéio, teria sido melhor do que acompanhar, por exemplo, Video Girl Ai!! 😖 

De qualquer forma, hoje, com internet e um pouco de paciência, já encontrei muito material que mostra personagens e temáticas negras de uma forma mais agradável... Às vezes, até engrandecedora. E o melhor: escritos, desenhados ou o que for pelas supracitadas pessoas negras reais. Criando tanto pelo profissionalismo quanto por uma representatividade sem estereótipos e depreciações... "Lutando contra a maré", como diria o Mano Brown... E é quase só isso que procuro consumir, hoje em dia.

Vamos destruir muita coisa, na real. ;)

Por fim, como este texto ficou maior do que eu esperava - e olha que não incluí as "citações diretas" que separei, hehehe - vou concluir com algumas recomendações de leituras - algumas webcomics, livros e artigos - que demonstram e expandem a ideia de protagonismo e da importância de autores negros, assim como o quão nociva é "representatividade ruim". Se for para ler coisas que me fazem mal, estaria lendo esses sites de supremacia branca, ora... Entretanto, com ou sem este texto, vai ter muito mais gente defendendo, consumindo e aplaudindo Risso, Tartakovsky ou quem for do que investindo em autores negros, infelizmente.

***

Algumas Recomendações:

- D.A.D.A, de Roberta Araújo e Renata Rinaldi [link
Herói, de Régis Rocha [link]
- Cumbe, de Marcelo D'Salete [link]
- As Lendas de Dandara, de Jarid Arraes [link]
- Princess Love Pon, de Shauna J. Grant [link]
- Demon Hunter Kain, de Burrell Gill Jr [link]
- Valorous Tales, de Dashawn Mahone [link
- "Entre o grotesco e o risível: o lugar da mulher negra na história em quadrinhos no Brasil", artigo de Marcolino Gomes de Oliveira Neto [link]
-"Black Women in Sequence: Re-inking Comics, Graphic Novels, and Anime", de Deborah Whaley [link
- "The Blacker the Ink: Constructions of Black Identity in Comics and Sequential Art", de Frances Gateward e John Jennings [link
- "Who is Marvel’s Blaxploitation Luke Cage comic even for, exactly?",  texto de Charles Pulliam [link]

2 comentários:

  1. Não conhecia esse mangá, ou melhor, conhecia de nome mas nunca li...quanto à crítica da esteriotipagem, é aquela treta do homem branco não saber ou mesmo tentar nos representar corretamente. Pra ver negro em quadrinhos de forma respeitosa, em sua maioria só quando escritos por autores negros

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